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Calçar sapatos

 A história de uma pessoa não é seu passado, mas sim sua vida. Nas conversas instigo a pessoa revisitar seu passado com a pergunta: "Fale de sua infância"
e surpreendentemente depois de alguns segundos de uma busca das memórias vem a resposta: "Não me lembro da minha infância." Daí devolvo carinhosamente
o questionamento "Não se lembra ou aprendeu a não falar de sua história de vida?" Outra resposta clássica "Nossa! Ninguém nunca me perguntou sobre
minha infância". Contar a história de vida é dizer que existe. 

 As famílias estão cada vez mais se visitando menos em relação aos tempos antigos, vinte anos atrás. As casas já não têm mais espaços para acolher e partilhar a vida em comum, assim, as histórias dos antepassados vão morrendo aos poucos pelo fato de não ter mais tempo para partilhar: alguém que fale e alguém que escute. Salve uma ou outra família tradicional que ainda consegue receber os familiares e compartilhar as experiências de seus antepassados. Salve quando o pai chega em casa e permite à filhinha relatar o que aconteceu na creche.

 Também os amigos não partilham mais suas lembranças. A história de alguém é sua vida. Ao ver as redes sociais não estamos vendo a história, apenas supomos que ela exista. Ali ela é líquida e passageira, superficial. O resultado de tudo isso é uma grande perda de memória repentina dos valores, dos esforços, da tradição e da pessoa. Quem não tem história, não existe. Não está no tempo. Não tem identidade. Não é assim quando encontramos alguém que estava perdido? Queremos saber sua história. 

 Escutar alguém falar sem que tenha em mãos um aparelho celular, sem que os olhos estejam voltados para os ponteiros do relógio e que o corpo e a mente estejam presentes no momento é uma raridade. Quando isto acontece, seria o mesmo que calçar os sapatos daquela pessoa para sentir em que partes apertam mais; caminhar com aqueles sapatos para observar onde o calo vai surgir. É sentir a textura do couro já batido e marcado com o tempo. Ouvir a história de alguém, mesmo que não nos simpatize é o mesmo que dizer "Eu sei que você existe!" 

 Sem um histórico de vida a pessoa se torna descartável com mais facilidade e a relação corre sério risco de se tornar objetal - não mais um Eu e Tu e sim um Eu e coisa, a coisa pode ser prazer, lucro, status, diversão, utilidade. Como é desgastante um relacionamento onde o marido 'procura' conversar com a mulher somente quando quer sexo. Como é estressante quando a vizinha só procura a outra quando quer um quilo de sal emprestado. Como é chato quando somos procurados quando alguém quer saber de alguma notícia... Ao ser solicitado por outra pessoa, já não dizemos mais "Como você está?" e sim "Vai, pede, do que você precisa?". Sem história as pessoas deixam de significar para apenas ser úteis: as relações acontecem porque o outro é útil, só por isso.  

 Outro ponto interessante de ser analisado são as histórias entre pais e filhos,
nulas de experiências externas. A relação entre casais, onde um não calça o sapato do outro e o divórcio, a infidelidade e as brigas surgem com mais frequência.

 Calçar os sapatos do outro é experimentar a sua história de vida. É permitir ao outro sentir que ele existe e que ocupa espaço naquele momento. Por mais que o nosso despreparo e indisposição interior venha disfarçado de falta de tempo é necessário não deixar a história do outro morrer. Por isso, converse mais - sobre
você. Escute mais - os outros. Partilhe mais - a vida. Calçar sapatos
Padre Saule Dias

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